GAIOLAS DE VUITTON

meu coração quase sempre
batia descompassado, debatia-se
deixava-se apanhar sem se achar
sofria de insuficiência aórtica,
parecia pássaro recém-posto na gaiola
de casa nova, de asa quebrada
justo eu que antes,
ave arteira,
podia ganhar a imensidão,
voar nos postes
disposto a pousar nos fios
sem choque
sem preocupação,
a catar meus bichos

e agora, sem te caçar, de sorte
esbarrei no teu destino,
nem tentei escapulir nem pudera
não queria mais como fugir
do acasalamento
do modo como as coisas estão dispostas,
de súbito, as sombras da prisão
dissiparam-se no clarão,
abriram-se as portinholas

e a tristeza emoldurada
que morava aqui dentro
com seu desencanto arribou dali
tomou um chá de sumiço, desgarrou
e acho que foi morar
além da ponte que caiu
pra lá dos cafundós de judas
pra lá de onde a outra perdeu as botas


só agora me toquei
e percebi que estragou aquele velho fubá
e fez o arredio tico-tico desandar
virar pássaro feliz, sensato
contente com a vida a levar
muito além das sobras do alpiste,
saiu do ranço da comida de costume
da ração sem escolha, do xerém do mofo
das migalhas empurradas bico a dentro.

espia aqui, ó, meu coração,
sinto que cantas ritmado
a refletir meus ais, sem galhos
e não há dúvida no que mais me apraz,
que é estar a andar ao teu lado, e voar
botar a cara no mundo, encorajado
remexer as asas, sem dó
sem sofreguidão
a soprar a liberdade
a tanger o orvalho
ser pássaro voando alto,
arranhar o céu
sem inveja alguma
das reluzentes gaiolas douradas de vitrine,
onde pobres aves se encantam se ofuscam
no já eterno imposto faz-de-conta
com suas vencidas almas penadas.

ora ora, de certo,
chega de quirelas...
ser andorinha só
é puro tédio, cansa
eu sou mais nós
fazendo verão!